Poluição é um dos rastros da cadeia de destruição da Amazônia

FSP, Folha Mais, p. 1 - 30/08/2021
Poluição é um dos rastros da cadeia de destruição da Amazônia
Municípios mais vulneráveis estão espremidos por vários tipos de crime

Guilherme Guerreiro Neto
InfoAmazonia
25.ago.2021

Não é só o fogo que está por trás da fumaça nos céus da Amazônia. Se, por um lado, a alta concentração de material particulado na atmosfera teve consequências nas internações por Covid-19 e outras síndromes respiratórias em 2020, por outro, essa mesma poluição do ar é um dos rastros deixados por uma cadeia de destruição e conflitos socioambientais. Em meio à névoa das cinzas, aparecem grilagem, exploração madeireira, o lado negativo do agronegócio, obras de infraestrutura e assassinatos de lideranças.
Em escalas diferentes, esses processos emergem nos municípios mais vulneráveis da região identificados na análise do InfoAmazonia. São dez cidades da Amazônia Legal, três delas no sul de Mato Grosso, integradas ao bioma Pantanal. Aqui, seguimos viagem pelas outras sete, que estão no bioma Amazônia. Quatro no sul e sudoeste do Pará (São Félix do Xingu, Altamira, Itaituba e Novo Progresso), uma no noroeste de Mato Grosso (Colniza), uma no norte e noroeste de Rondônia (Porto Velho) e uma no sul do Amazonas (Lábrea).
Com a utilização de algoritmo de classificação interativo, essas cidades foram agrupadas pela similaridade de perfil, considerando dados de queimadas, desmatamento, precipitação, poluição e população, entre julho e outubro de 2020. Comparados aos outros grupos gerados, os dez municípios vulneráveis tiveram, por mais vezes, média diária de material particulado acima de 25 microgramas por m3. Isso indica exposição contínua a nível alto de poluição. Os municípios também apresentaram as maiores médias de área desmatada e de focos de calor.
Perda e pressões no território Xikrin
Faz quase um ano que a Covid-19 tirou a vida do cacique Onça. Assim era conhecido Beptok Xikrin, liderança da terra indígena (TI) Trincheira Bacajá, localizada entre os municípios de Senador José Porfírio, São Félix do Xingu, Anapu e Altamira, no Pará. Beptok recebeu o diagnóstico em 3 de agosto de 2020. No dia 6, foi removido para o Hospital Regional de Altamira e, dois dias depois, para a UTI do Hospital Regional Público da Transamazônica. O cacique morreu em 31 de agosto, após 26 dias de internação.
"O grande cacique Beptok era o único cacique quando era só uma aldeia, a aldeia Bacajá. Na década de 1980, houve invasão e o cacique se mobilizou para retirar os invasores. Hoje, estão grilando essa mesma área, está tendo invasão. A gente está se organizando para retirar o pessoal, igual ele fez. Dentro da TI, temos 20 aldeias. Fica difícil a gente organizar para fiscalizar a nossa terra", conta Bebere Xikrin, cacique da aldeia Kenkro e presidente da Associação Bebô Xikrin do Bacajá.
O avanço recente de invasores provocou aumento vertiginoso no desmatamento dentro da Trincheira Bacajá, com perda de mais de 70 km2 entre 2018 e 2020, de acordo com dados do Prodes/Inpe. Nesse período, a terra indígena dos Xikrin foi a quarta mais desmatada na Amazônia. Esteve, em setembro do ano passado, entre as TIs no Pará que mais queimavam. Segundo o cacique Bebere, a cerca de 4 km ou 5 km da aldeia Kenkro, no rumo da Vila Sudoeste, há áreas invadidas com pasto e gado.
"A região mais preocupante fica entre São Félix e Novo Progresso. Existe, de um lado, uma frente de desmatamento muito ampla que vem destruindo a Área de Proteção Ambiental (APA) Triunfo do Xingu. Essa frente tem vários ramais que já entraram na Estação Ecológica (Esec) da Terra do Meio, em direção ao rio Iriri. De outro lado, a pressão vem da BR-163, com várias aberturas e grilagem de terra dentro da Floresta Estadual (FES) do Iriri, que está indo na direção daquela outra frente", explica Ricardo Abad, analista de geoprocessamento da Rede Xingu+.
A APA Triunfo do Xingu, que fica parte em São Félix do Xingu, parte em Altamira, está sempre no topo do desmatamento e dos focos de calor em unidades de conservação estaduais na Amazônia. A área de proteção perdeu mais de 1,8 milhão de km2 de floresta nos últimos cinco anos -pela contagem do Prodes. No caso do fogo, a principal origem é a pecuária. São Félix, conforme o IBGE, é o município com o maior rebanho de gado do país. A Esec da Terra do Meio e a FES do Iriri, que se mantêm bem mais preservadas, já aparecem na rota da destruição.
Em agosto de 2020, a equipe do Sistema de Indicação por Radar de Desmatamento da Bacia do Xingu (Sirad X), da Rede Xingu+, denunciou ao governo do Pará e ao Ministério Público do Estado em Altamira a existência de invasões e atividades ilegais de exploração madeireira e garimpo na FES do Iriri. Uma análise de registros do Cadastro Ambiental Rural (CAR) feita pelo Sirad X identificou frentes de loteamento na unidade de conservação, com mais de um grupo grilando a mesma área.
Fogo e ouro nos caminhos da soja
Novo Progresso, por onde passa a BR-163, é o município do "dia do fogo", ação coordenada de produtores rurais para queima simultânea e generalizada de vegetação, que ocorreu em agosto de 2019. É também onde fica a Floresta Nacional (Flona) do Jamanxim, unidade de conservação federal com mais incêndios na temporada de queimadas do ano passado e a que tem o maior avanço de área desmatada, quase 300 km2 entre 2018 e 2020, de acordo com o Prodes.
Em agosto de 2020, os Kayapó bloquearam a BR-163 para reivindicar a renovação do componente indígena do Projeto Básico Ambiental (PBA) da rodovia, a consulta ao povo e o reconhecimento dos impactos a respeito da Ferrogrão, além de assistência à saúde, diante da precariedade do Hospital Municipal de Novo Progresso e da Casa de Saúde Indígena. Quatro anciãos do povo Kayapó, àquela altura, já haviam morrido por conta da Covid-19. Enquanto o protesto ocorria, uma grande nuvem de fumaça cobria a estrada. O componente indígena do PBA até hoje não foi renovado.
O governo federal realizou, em julho, um leilão de concessão da BR-163 pelo período de 10 anos, entre Sinop, em Mato Grosso, e Miritituba, no Pará. No traçado desse corredor de escoamento de commodities, ficam marcas da degradação. O monitoramento do Sirad X identificou, no trecho paraense inicial da BR-163 até Castelo dos Sonhos, distrito de Altamira, um aumento de 359% na área desmatada, considerando os quatro primeiros meses de 2021 em comparação ao mesmo período do ano passado.
Violência entre a madeira e o gado
Em meio a assassinatos e conflitos por terra, Colniza lidera os registros de desmatamento e focos de calor na Amazônia matogrossense. Entre 2016 e 2020, aponta o Prodes, foram mais de 1.000 km2 de floresta perdidos. O major do Corpo de Bombeiros Adailton Luz, com base em Juína, coordena o combate ao fogo em Colniza e outros oito municípios da região. "As queimadas aqui são mais para limpar o pasto mesmo. E tem também a exploração da madeira. Colniza praticamente sobrevive do setor madeireiro", diz o major.
Arco do desmatamento avança e sufoca
Um dos focos de crimes, no traçado da BR-364, é a Ponta do Abunã, que está na divisa tríplice de Porto Velho com Lábrea, Acrelândia, no Acre, e a Bolívia. Lá, em 2017, Manoel Quintino Kaxarari, liderança indígena, foi assassinado por pistoleiros. Madeireiras da região invadem o Amazonas e o Acre para roubar toras. O desmatamento, a grilagem e o medo avançam também para o sul de Lábrea. Em abril de 2019, o posseiro Nemes Machado de Oliveira foi executado no seringal São Domingos.
Lábrea é o município do Amazonas campeão em desmatamento. De 2016 a 2020, conforme o Prodes, teve quase 1.700 km² de floresta derrubada. Foi também o que mais queimou entre julho e outubro do ano passado. A promessa de obras na BR-319, conectando Porto Velho a Manaus, intensifica a destruição. "Se sair a pavimentação da BR-319, vai ser um desastre. Ali tem um dos últimos e maiores mosaicos protegidos do mundo. Protegido pelos povos indígenas e ribeirinhos que estão sendo cada vez mais afastados por esse processo de degradação", considera Marcela Vecchione.
As consequências aparecem na saúde das pessoas. "O pico de internações por Covid aqui foi no mês de agosto, setembro. Nesse período de verão, algumas coisas pioram muito. Tem a questão das queimadas, das fumaças na região. O que acaba sendo um fator que contribui para as síndromes respiratórias. Todo ano a gente tem um aumento, nessa época, de casos de asma, bronquite, internações de crianças por conta da situação climática", revela Gabriela Luz, gerente de enfermagem do Hospital Regional de Lábrea.

FSP, 30/08/2021, Folha Mais, p. 1


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