Como agem impunemente os incendiários da Floresta Amazônica

Época - https://epoca.globo.com - 30/08/2019
Como agem impunemente os incendiários da Floresta Amazônica
Desmatadores colocaram o Brasil no centro da preocupação internacional

Sérgio Roxo, enviado especial ao sul do Pará
30/08/2019 - 06:00

Localizada na divisa entre os municípios de São Félix do Xingu e Altamira, no Pará, a Área de Proteção Ambiental Triunfo do Xingu deveria ser rebatizada - de proteção ambiental não tem nada. Na última semana de agosto, os focos de incêndio ali já eram poucos, mas o rastro de destruição deixado pelo fogo estava por toda parte. Às margens das precárias e empoeiradas estradas, contrastando com áreas ainda com vegetação nativa, apenas o solo preto e árvores retorcidas.

De todas as regiões da Amazônia que arderam ou ainda estão queimando neste ano, nenhuma se compara em tamanho à área visitada por ÉPOCA na última semana de agosto. Um único trecho de 3.730 hectares de floresta, equivalentes a 23 parques Ibirapuera, em São Paulo, ou 31 aterros do Flamengo, no Rio de Janeiro, simplesmente desapareceu. Ele ocupa o 1o lugar no vergonhoso ranking das maiores queimadas de 2019. A derrubada no local provocou a emissão de 111 alertas entre 6 de maio e 29 de julho, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) contabilizados pela ONG MapBiomas. Não por coincidência, a segunda maior área de desmatamento fica na mesma região, a 160 quilômetros de distância.

O caminho para chegar ao ponto mais desmatado da Amazônia começa em São Félix do Xingu, município de menos de 130 mil habitantes. Do centro da cidade, uma balsa leva meia hora para cruzar o Rio Xingu. Na terça-feira 27, fazendeiros e funcionários de propriedades locais aproveitavam o tempo de travessia para comentar o noticiário. A influência do discurso do presidente Jair Bolsonaro se fazia ouvir. "O povo das ONGs está queimando tudo aí para cima", dizia um homem com correntes de ouro nos braços e sotaque nordestino, propagando a acusação sem provas apresentada pelo presidente na semana anterior. Nenhum dos presentes fez comentário.

O mecanismo do desmatamento não é segredo para ninguém naquele ponto do Pará - e não há histórico de crimes ambientais cometidos por organizações não governamentais voltadas para a preservação da floresta. Nessa região, as árvores desaparecem e dão lugar a pasto.

A destruição dessa parte da Amazônia avança rapidamente. Depois da saída da balsa, o que se vê são pastagens a perder de vista e gado, muito gado. São Félix do Xingu orgulha-se de ter o maior rebanho do país. A maior fazenda da região é a Santa Bárbara, do banqueiro Daniel Dantas, do Grupo Opportunity. Nos 50 quilômetros iniciais da estrada, a manutenção é feita pela prefeitura de São Félix do Xingu. Dos outros 200 quilômetros até chegar à área de desmatamento são os fazendeiros que tomam conta. O nome das propriedades, a maioria dentro do município de São Félix, e o valor correspondente despendido são destacados em placas afixadas ao longo do caminho. Somente na véspera do encontro dos líderes do G7, as sete maiores economias do mundo, no sul da França, e quando o aumento no número de queimadas neste ano ganhava as manchetes da imprensa internacional, homens do Ibama e da Polícia Militar do Pará deram início a uma fiscalização na região da Fazenda Ouro Verde.

O desmatamento ali ocorria havia pelos menos cinco meses. O problema, porém, não se resumiu ao atraso no combate. Como numa cena coreografada para parecer bem-sucedida, todos fazem sua parte para a ação não dar em nada. A batida até teve resultados concretos. Encontrou motosserras (14 delas), espingardas (7), motos (19) e cerca de 50 homens, trabalhadores braçais que se dividiam em 11 acampamentos no meio da mata. Alguns haviam levado a mulher. Até duas crianças na faixa dos 3 anos de idade viviam ali, em condições precárias.

Infelizmente, o Ibama e a polícia paraense não mostraram a mesma competência para chegar ao principal suspeito pelo desmatamento. A figura conhecida na região pelo curioso e até irônico apelido de Geraldinho Palmeira fugiu sem ser perseguida. "A gente estava no meio da mata, e ele passou correndo dentro de uma caminhonete. Nem tivemos tempo de pará-lo", contou um policial que participou da ação.

Segundo funcionários de fazendas vizinhas, Geraldinho comprou a área no começo do ano. Ele ganhou fama na região por se orgulhar do desmatamento ostentando fotos da mata destruída em seu status do WhatsApp. Geraldinho não provou ser apenas um ás do volante na comparação com os policiais paraenses. Mostrou também ser muito mais astuto. Ao fugir, deixou para trás quatro tratores, que foram apreendidos pelos fiscais. Mas o prejuízo não durou muito tempo. O motorista de uma carreta da prefeitura de São Félix do Xingu que se dirigia à fazenda - surpreendentemente sem uma escolta armada - foi abordado na estrada por homens e disse ter escapado da morte porque um deles era seu conhecido.

Como os agentes não tinham como transportar todos os tratores, os veículos foram deixados na fazenda para ser retirados no dia seguinte. Quando voltaram - quanta surpresa! -, os equipamentos não estavam mais lá. Nem mesmo o grupo de 50 trabalhadores braçais foi levado a uma delegacia. A justificativa foi a ausência de um ônibus para percorrer os 250 quilômetros até a sede do município.

As motosserras, motos e espingardas garantiam provas e fotos do trabalho de fiscalização realizado. Até o fechamento desta edição, contudo, o principal suspeito, Geraldinho, estava desimpedido para continuar a rotina de desmatamento.

A derrubada da floresta segue o regime de águas. As derrubadas, em geral, são feitas logo após o período de chuvas, em maio, para que as árvores possam secar a fim de serem queimadas antes que a água volte a cair, em setembro. Se for localizado para ser notificado, Geraldinho, o suposto dono de fato da Fazenda Ouro Verde, será autuado para pagar mais de R$ 15 milhões. Na Amazônia, entretanto, multas raramente são pagas. A direção do Ibama foi procurada para falar sobre os problemas da região e não apresentou respostas. A Secretaria do Meio Ambiente do Pará disse que só depois da conclusão da operação é que será definido o enquadramento do responsável pela propriedade por crime ambiental. ÉPOCA telefonou e enviou mensagens para Geraldinho e não obteve resposta.

"PROPRIEDADES QUE DESCUMPREM REGRAS AMBIENTAIS NÃO PAGAM MULTAS, PODEM COMERCIALIZAR BOIS E SER NEGOCIADAS SEM QUALQUER RESTRIÇÃO OU EMBARAÇO LEGAL"

Como é comum acontecer no Brasil sempre que uma grande crise estoura, desta vez também há um debate a respeito de uma suposta necessidade de novas leis e regras. Um dos alvos do governo agora é o decreto que proíbe o uso do fogo em todo o território nacional por um período de seis meses. Editado na quarta-feira 28, tem chance de ser mais uma regra para inglês ver. Como estão na Amazônia, as fazendas localizadas na região de Triunfo do Xingu deveriam manter a maior parte de suas áreas preservada. "Conheço Triunfo do Xingu, e quase nenhuma propriedade segue essa regra", disse o procurador da República Daniel Avelino, que já atuou no Pará e atualmente trabalha em Brasília. As propriedades que descumprem as exigências ambientais não têm quase nenhum ônus, o que acaba servindo de combustível para o desmatamento. Podem comercializar produtos ou até mesmo ser vendidas. "Como a propriedade ilegal tem os mesmos benefícios de propriedade legal, há um incentivo para o ilícito. Quais os prejuízos que o proprietário tem por estar com a situação ambiental irregular? Nenhum", avaliou Avelino. Para o procurador, o correto seria que travas burocráticas impedissem o fazendeiro ilegal de produzir. "Os órgãos públicos precisariam atuar em sintonia. Não faz sentido a propriedade ser irregular para a Secretaria do Meio Ambiente porque não respeita a reserva legal e, ao mesmo tempo, conseguir emitir nota fiscal pela Secretaria de Fazenda e guia de trânsito animal pelo órgão de controle sanitário. Do jeito que é, o Estado legaliza a ilegalidade. Permite até a confecção de um Cadastro Ambiental Rural (CAR) para alguém que não está cumprindo a legislação", acrescentou.

Como ÉPOCA constatou depois de percorrer mais de duas centenas de quilômetros na região, o gado pastando junto a áreas recentemente desmatadas ou atingidas por queimadas indica que a derrubada da mata não atrapalha os negócios. Ricardo Abad, especialista em sensoriamento remoto da ONG Instituto Socioambiental (ISA), afirmou que a região nem parece uma área de proteção ambiental, tamanho o ritmo do desmatamento registrado ali nos últimos anos. Ele disse que 90% das propriedades da área não possuem reserva legal.

Segundo o ambientalista, a retórica do governo Bolsonaro contribuiu para intensificar o problema. "Esse discurso entra nessas regiões e vira um telefone sem fio. Chega como 'o presidente liberou o desmatamento'. Ele pode não ter falado exatamente isso, mas toda a retórica do governo vai nesse sentido", disse Abad.

Bolsonaro e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, enfrentam a maior crise desde o início do governo.

É verdade que Bolsonaro não mandou ninguém tacar fogo na mata, mas duvidou dos dados de desmatamento divulgados pelo Inpe sobre o mês de junho, que davam conta de um aumento de 88% em relação ao mesmo mês do ano passado, e mandou demitir o diretor do órgão, Ricardo Galvão, após ele ter defendido o instituto. Não perdeu a oportunidade de criticar ONGs ambientais, dizendo que estavam por trás de interesses estrangeiros na Amazônia. Antes e depois da crise internacional sobre a Amazônia, Bolsonaro também tem falado em explorar economicamente terras indígenas. Segundo os dados do Inpe, o número de queimadas na Amazônia de janeiro a meados de agosto está mais de 80% acima do registrado no mesmo período do ano passado.

No começo do ano, os senadores Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho zero um do presidente, e Márcio Bittar (MDB-AC) apresentaram um projeto de lei para acabar com a exigência de reserva legal. Por lei, todas as propriedades rurais situadas na Amazônia deveriam manter 80% de sua área com vegetação nativa, a chamada reserva legal, e usar apenas os 20% restantes para a produção agrícola ou agropecuária. Fazendas ocupadas antes de 2008 podem reduzir esse índice de preservação para 50%. Ainda é permitido compensar uma terra desmatada além dos limites com uma área de preservação maior em outras propriedades que sejam do mesmo dono. Flávio Bolsonaro queria acabar com tudo isso. Neste mês, diante da crise causada pela onda de queimadas, Flávio Bolsonaro e Bittar retiraram o texto de tramitação.

"PARA MUITOS MORADORES DA REGIÃO, A FLORESTA AMAZÔNICA VALE MAIS DESTRUÍDA DO QUE SE MANTIDA CONSERVADA. UM HECTARE JÁ DESMATADO CUSTA DEZ VEZES MAIS DO QUE UMA ÁREA COBERTA"

Em boa parte da Amazônia, a floresta vale, em termos imediatos, mais destruída do que intacta. Em Triunfo do Xingu, um hectare de floresta custa entre R$ 300 e R$ 400. Na "área aberta", como os produtores da região se referem aos pontos desmatados, o valor do hectare sobe para entre R$ 4 mil e R$ 5 mil. Além da venda, um negócio comum é o aluguel de pasto. São pagos, em média, de R$ 20 a R$ 25 por mês por cabeça de gado. Segundo um relatório da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec), em São Félix do Xingu há 2,5 milhões de cabeças, ou 20 bois para cada habitante da cidade.

Para quem estuda o problema do desmatamento está claro que o motor por trás das queimadas são pecuaristas da Amazônia. Desde 1988, 63% de tudo que foi desmatado na região se transformou em pasto de baixa produtividade. Nem todos os fazendeiros, é certo, têm uma mentalidade antiambiental. Com medo de que a carne fique com a pecha de fruto da destruição da floresta e seja embargada nas negociações comerciais, o fazendeiro Mauro Lúcio Costa se tornou um dos maiores críticos da derrubada da mata. "O desmatamento é um bom negócio para quem faz. A terra de floresta é comprada a preço de banana por aqui", afirmou. "Nossa carne tem de ser embalada com o selo da biodiversidade, com produção sustentável. Esse é nosso maior ativo." Em grupos de WhatsApp que reúnem fazendeiros, ele costuma ser criticado quando manifesta sua posição antidesmatamento em entrevistas. Muitos adotam o discurso de antagonismo entre desenvolvimento e preservação. Publicamente, os produtores mais importantes do estado, porém, têm fugido das discussões em torno do tema desde que a crise ambiental se agravou.

Nascido em Governador Valadares, Minas Gerais, o fazendeiro antidesmatamento, que mantém o sotaque mineiro, chegou ao Pará em 1982 e se estabeleceu em Paragominas, a 880 quilômetros de São Félix do Xingu, onde seu pai e seu avô tinham montado uma fazenda, motivados pelas políticas de ocupação da Amazônia criadas pela ditadura militar. Tanto o pai e o avô como o próprio Costa já desmataram a floresta. "As coisas mudam. Hoje, não há mais sentido em fazer isso. Temos é de melhorar a produtividade das áreas já desmatadas e produzir ali. Tem de viabilizar financeiramente esses locais, fazer com que gerem riqueza, porque é só essa riqueza que vai ajudar a brecar o desmatamento."

Vestido sempre no estilo caubói, com chapéu de couro, bota de cano alto e cinto de fivela larga, Costa continua com a propriedade em Paragominas, mas presta consultoria para três fazendas na região de Triunfo do Xingu, onde acompanha de perto o avanço do desmatamento. Para ele, o primeiro passo para coibir os desmatamentos passa pela regularização fundiária. "Cada pedaço de chão tem de estar vinculado a um CPF. Não pode ter terra de ninguém e, se a pessoa não estiver com a terra regularizada, não deveria poder fazer nenhum negócio", opinou.

O governo federal criou o Cadastro Ambiental Rural (CAR) justamente com esse objetivo, em 2012. ÉPOCA levantou o registro de uma dezena de propriedades em Triunfo do Xingu próximas à área onde ocorreu a fiscalização do Ibama. Em nenhuma deles, porém, aparecia Geraldo ou Palmeira, nomes que poderiam fazer referência a Geraldinho Palmeira, que é apontado como dono da Fazenda Ouro Verde e responsável pelo desmatamento. "Aqui todo mundo sabe quem é o dono da terra, onde termina a propriedade de um e começa a do outro, mas você vai olhar o papel e quase nada bate", afirmou Costa. Pelo CAR, a área do maior desmatamento da Amazônia em 2019 tem como responsável Paulo José da Silva, de 82 anos, morador de Salvador. Na Receita Federal, seu nome também consta como sócio de empresas químicas e de empreendimentos imobiliários na Bahia e de uma agropecuária em Goiás. Ele não foi localizado, mas, pelo visto, só o jornalista estava atrás dele.


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Amazônia:Queimadas

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