Patrimônio sob ameaça

O Globo, Rio, p. 10 - 13/08/2014
Patrimônio sob ameaça
Falta de fiscais prejudica preservação de reservas naturais e de bens tombados no estado

Taís Mendes

RIO - Riquezas naturais e históricas do Rio estão ameaçadas pela falta de fiscalização. Em todo o estado, há 71 funcionários do Instituto Chico Mendes (ICMBio) para tomar conta de 42 unidades de conservação federais. Já no caso dos 241 bens tombados pela União - incluindo os centros históricos de Vassouras e de Petrópolis -, o número de agentes encarregados de proteger esse patrimônio também é ínfimo: somente 30.
Do total de bens tombados, 158 estão na capital, onde também atuam 23 dos 30 fiscais do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico e Nacional (Iphan), que têm ainda a tarefa de proteger 800 sítios arqueológicos. Ivo Barreto, superintendente do órgão no Rio, reconhece a insuficiência de fiscais.
- Não é o ideal e não se consegue ter uma rotina de fiscalização como se gostaria. Mas há uma estratégia de criação de ferramentas que podem auxiliar, como dados digitalizados e relatórios atualizados dos bens. Ainda assim, a gente nota no Rio um envelhecimento do quadro (de pessoal), com índice de aposentadoria cada vez maior. Há a necessidade de reforço. Nos últimos três meses, recebemos seis servidores de um concurso realizado em 2009. Depois desse, mais um foi organizado, mas para contratação temporária.
Para se ter uma ideia da carência, o escritório do Iphan em Petrópolis dispõe de apenas três funcionários para fiscalizar cerca de 500 imóveis e bens tombados em mais 20 municípios. No Médio Paraíba, são dois; na Região dos Lagos, há somente um fiscal, que também é o chefe do escritório; e, na Costa Verde, um apenas. É bom lembrar que, na lista de itens protegidos do Iphan, os centros históricos de Vassouras e Petrópolis são contados como apenas um bem tombado cada, mas a preservação inclui todos os imóveis existentes nessas áreas.
BENS DEGRADADOS EM VASSOURAS
O número reduzido de fiscais explica o abandono do Centro Histórico de Vassouras, por exemplo, onde valiosas relíquias do Brasil Império estão desaparecendo, por falta de conservação. Mas, segundo Ivo, já existe verba destinada para a recuperação de bens tombados no município:
- Ano passado, foi aprovado por decreto presidencial o PAC das Cidades Históricas, e temos no horizonte R$ 26 milhões em obras, que já começam a ser executadas este ano. Há quatro licitações em andamento em Vassouras. Além disso, duas obras emergenciais já estão sendo realizadas. E a prefeitura da cidade vai licitar a recuperação dos chafarizes e dois contratos de restauração.
No interior, o superintendente defende uma fiscalização em conjunto com as prefeituras:
- Temos que fortalecer a atuação dos municípios, que conhecem seus territórios e são agentes importantes na preservação. A gestão do patrimônio está inserida na gestão do solo, e esse papel tem que ser exercido também pelas prefeituras. O município está mais bem instrumentalizado, tem fiscais para lidar com a demanda.
A falta de pessoal também afeta a proteção das unidades de conservação federais do Rio, que ocupam 365.794 hectares. Isso é o equivalente a 8% da área total do estado e a 64% do território de todas as reservas naturais (não só as da União, como as sob a administração do estado e dos municípios). Na prática, há um fiscal para cada 51Km². Na Reserva Biológica de Tinguá, em Nova Iguaçu, por exemplo, uma área de pouco mais de 26 mil hectares, atuam apenas quatro fiscais. Até bem pouco tempo, a situação era ainda pior: o próprio chefe da reserva acumulava a função de fiscal da área.
Em Silva Jardim, a Reserva Biológica de Poço das Antas, de cinco mil hectares, também tem apenas quatro fiscais. Em fevereiro, quando um incêndio destruiu mil hectares da reserva, que abriga o ameaçado mico-leão-dourado, foi preciso mobilizar amigos de funcionários, ex-servidores e parceiros para formar uma brigada e combater as chamas.
Na região de Poço das Antas, a solução foi juntar forças. Ali foi adotado o modelo mosaico, uma estratégia lançada pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação, em 2000, que prevê uma administração única para reservas sobrepostas ou próximas - independentemente da esfera de governo a que pertencem -, com o objetivo de superar problemas como a falta de fiscais. No caso de Silva Jardim, são três unidades (Poço das Antas, União e APA da Bacia de São João).
Esse modelo conta com conselhos formados por chefes das unidades, proprietários de terras e ONGs. O Rio é o estado com o maior número de mosaicos. São cinco: Mico-Leão-Dourado (Silva Jardim); Central Fluminense; Bocaina (que engloba unidades do Rio e de São Paulo); Carioca (Parque Nacional da Tijuca, Ilhas Cagarras, Parque Estadual da Pedra Branca e unidades municipais); e o da Mantiqueira (reservas de Rio, São Paulo e Minas).
- Ano passado, conseguimos prover R$ 1,5 milhão para os mosaicos do Rio. São sistemas de gestão integrada, mas que acabavam sobrecarregando algumas unidades, que, além de tratar de assuntos de seu território, tinham que gerir o mosaico. Alguns não estavam funcionado, como o do Mico-Leão-Dourado. Mas conseguimos comprar equipamentos e contratar pessoal. A partir deste ano, a gestão por mosaico já teve uma melhora significativa, que vai se refletir na fiscalização - diz Rogério Rocco, analista ambiental do Instituto Chico Mendes.
André Ilha, ex-diretor de Biodiversidade e Áreas Protegidas do Instituto Estadual do Ambiente (Inea), faz um alerta. De acordo com ele, por falta de fiscalização, alguns parques estão sendo parcialmente fechados.
- Isso gera um efeito oposto. As áreas fechadas, isoladas, atraem os mal-intencionados. A presença de pessoas de bem inibe a atuação de caçadores, passarinheiros e outros criminosos ambientais. Por isso, defendo uma política consistente de visitação.
André defende ainda a criação de guarda-parques nas unidades do governo federal, a exemplo do que ocorreu nas reservas do estado:
- Um estudo do Banco Mundial concluiu que o fator mais importante para a gestão de uma área qualquer é a presença de gente que interaja com todos os atores sociais. Essa figura, por definição, é o guarda-parque. No Inea, usamos profissionais de nível médio, treinados e equipados. Hoje, não se concebe mais no Rio um parque sem a presença desses profissionais.
INSTITUTO FEZ TRÊS CONCURSOS DESDE 2007
O ambientalista Pedro da Cunha Menezes também cita a iniciativa do Inea, mas diz que, primeiro, é preciso regulamentar a profissão de guarda-parque:
- Não há como fazer concurso para uma profissão que não foi regulamentada.
Segundo Pedro, a relação hectare/servidor do país é uma das menores do mundo:
- No Zimbábue, são dois mil servidores para cuidar de cinco milhões de hectares protegidos. Os Estados Unidos protegem 73 milhões de hectares e têm 30 mil funcionários. O Brasil, com uma área um pouco maior, de 75 milhões de hectares protegidos, tem apenas dois mil servidores.
Desde 2007, ano de criação do ICMBio, apenas três concursos foram realizados, e mesmo assim para abastecer unidades na Amazônia, onde o cenário é ainda mais desfavorável.
Em nota, o instituto informou que, além de ter agentes aptos a atuar como fiscais no estado, são realizadas operações de rotina e específicas, com reforço de outras instituições, como Polícia Federal, Ibama, Inea e prefeituras. O texto acrescenta que também "são realizadas diversas operações conjuntas que englobam grandes territórios com duas ou mais unidades de conservação, inclusive estaduais e municipais". Segundo o órgão, nos últimos cinco anos, foram emitidas mais de 1,3 mil multas, que resultaram em apreensões, demolições de construções irregulares e recuperação de áreas degradadas no interior e no entorno das unidades de conservação.

O Globo, 13/08/2014, Rio, p. 10

http://oglobo.globo.com/rio/falta-de-fiscais-prejudica-preservacao-de-reservas-naturais-de-bens-tombados-no-estado-13582629
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