Caatinga: a penúria financeira das unidades de conservação federais

((o))eco - http://www.oeco.org.br/ - 20/06/2017
As Unidades de Conservação federais da Caatinga recebem pouco dinheiro, de forma muito inconstante entre anos e desigual entre áreas, existem "primas ricas" e "primas pobres", tamanho não importa, e o recurso que recebem não é gasto com a conservação da biodiversidade propriamente dita. Estas são as perturbantes conclusões de um estudo nosso recém-publicado onde o orçamento de 2008 a 2014 de 20 Unidades de Conservação federais que cobrem 2,35 milhões de hectares da Caatinga foi analisado em detalhes.

Usando dados oficiais do ICMBio, os valores totais disponibilizados para estas 20 UCs nos sete anos analisados alcançaram cerca de US$ 33 milhões (valores em dólares para que fossem comparáveis com dados de outros países - veja mais abaixo), e variaram de pouco mais de US$ 231 mil em 2008, até cerca de US$ 13.5 milhões em 2011. Em princípio, pode parecer bastante dinheiro. Entretanto, a regularização fundiária de apenas uma UC, o PARNA Serra das Confusões, no Piauí, consumiu cerca de 75% do orçamento total do período. Então, na prática, as 20 UCs contaram com bem menos do que a contabilidade parece indicar.

Analisando as rubricas e as despesas de cada UC, fica constatado que não há padronização de gastos ou de disponibilidade de recursos entre unidades e anos. Em média, os orçamentos interanuais variaram 7,9 vezes. Quinze das 20 UCs tiveram aumento orçamentário entre 2008 e 2014. Mas isso não quer dizer obrigatoriamente que a situação orçamentária destas áreas seja boa. Por exemplo, a maior variação observada foi a do orçamento do Monumento Natural do Rio São Francisco, onde no ano de 2010 foram gastos R$ 415,00 e no ano seguinte, R$ 68.806,34. Embora tenha havido uma variação de 165 vezes, o maior orçamento não representa uma quantia alta para a gestão de uma área de 26 mil hectares.

Observamos ainda que a partir de 2012 uma tendência geral de prover as UCs com orçamentos crescentes foi interrompida e revertida, tornando o cenário financeiro instável. Acreditamos que a situação orçamentária atual é ainda pior frente aos cortes de recursos impostos ao Ministério do Meio Ambiente de 2014 para cá. Ainda assim, nove UCs receberam valores bem acima da média por hectare. Estas foram as "primas ricas". Já outras nove UCs, as "primas pobres", receberam bem abaixo da média. E esqueça o ditado machista: entre as UCs da Caatinga tamanho não é documento. As pequeninas FLONAs de Palmares (168 hectares), no Piauí, e de Açu (218 hectares), no Rio Grande do Norte, as duas menores entre todas, receberam proporcionalmente por área muito mais dinheiro que as demais.

A enorme variação de recursos entre anos e áreas aponta para algo que todo mundo já sabe: uma falta de padronização orçamentária por parte do governo federal. Esta grande variação certamente expõe os gestores destas UCs a um exercício constante de contabilidade, de priorização e de abandono de atividades iniciadas ou planejadas, com cortes severos de despesas de um ano para o outro. Tais variações podem criar ainda situações onde o dinheiro para rubricas específicas que não existia em um ano torna-se extremamente abundante em outro, exigindo seu gasto imediato sob o risco de devolução do dinheiro sem ter sido totalmente usado. Na sua essência, tanto o primeiro quanto o segundo cenário refletem má gestão financeira.

Mas agora começam as notícias ruins. Muito ruins. Excluindo-se gastos com regularização fundiária, as 20 UCs receberam em média US$ 0.50 por hectare por ano. Mesmo computando estimativas de salários, o orçamento médio alocado para estas 20 UCs é cerca de 13 vezes inferior aos valores apontados pelo próprio Ministério do Meio Ambiente como necessários ao funcionamento básico de uma unidade de conservação no Brasil, cerca de 1.5 vezes inferior ao gasto médio global, até 5 vezes abaixo do gasto médio em parques da América Latina e África, e até 72 vezes inferior ao gasto médio na União Europeia.

Mas o mais impactante foi a constatação de como os recursos recebidos estão sendo prioritariamente gastos. Excluindo-se os 75% gastos com regularização fundiária no PARNA Serra das Confusões, aproximadamente 62% do orçamento que restou foram para o pagamento de vigilância patrimonial ostensiva. Sim, alarmantemente, no período analisado, o maior gasto do ICMBio para com as UC da Caatinga foi o guarda que vigia o escritório. É necessário esclarecer que vigilância patrimonial ostensiva não deve ser confundida com as atividades de fiscalização ambiental, atribuição dos analistas capacitados lotados ou não na UC. Assim, considerando que algumas UCs da Caatinga têm áreas de milhares de hectares, na prática não há garantia que o pagamento do guarda do escritório esteja sendo revertido em benefícios para a conservação da biodiversidade e da integridade física destas áreas, como a prevenção, por exemplo, de desmatamento ou caça dentro delas. Para exemplificar, os gastos com vigilância na menor UC estudada (FLONA de Palmares, 168 ha) foram quase o dobro do gasto em áreas muito maiores, como o PARNA Chapada Diamantina (152.141 ha) ou a APA Chapada do Araripe (972.590 ha).

É interessante notar ainda que algumas das UC que acionaram a rubrica de vigilância patrimonial ostensiva não dispõem de sede física ou escritório. Diante desta constatação, é provável que ou a função de vigilante patrimonial não esteja sendo cumprida como descrita, ou que os contratados estejam na prática exercendo outras funções nestas UC. Outros dados interessantes: o valor gasto com vigilância patrimonial ostensiva aumentou quase 80 vezes entre 2008 e 2014; em 2008 apenas duas UC haviam acionado esta rubrica, em 2014 foram 15 UCs; cerca de 40% dos gastos com vigilância foram nos PARNAS Ubajara e da Serra da Capivara (neste último talvez merecidamente em função de seu sistema de guaritas de vigilância).

Estudos ao redor do mundo apontam que a gestão efetiva de uma área ou de um sistema de áreas protegidas só é possível a partir da disponibilidade regular de recursos financeiros. A redução de recursos para áreas protegidas não é uma exclusividade do Brasil ou da Caatinga, mas infelizmente uma tendência mundial. O ICMBio tem enormes desafios, pois além de administrar um dos maiores sistemas de áreas protegidas do mundo, também sofreu e sofre com a instabilidade financeira e política recente no Brasil. Entretanto, nossa análise expõe o abismo financeiro experimentado especialmente pelas UCs da Caatinga: alarmantemente recebem menos até mesmo que a média global - que já é baixa. A comparação com parques europeus chega a ser desoladora. Isso certamente contribui para que, na prática, algumas UCs da Caatinga funcionem como "parques de papel". Não por acaso, de acordo com o Cadastro Nacional de Unidades de Conservação, das 20 UC estudadas 12 não possuem conselho gestor, 11 não possuem plano de manejo, 10 não apresentam o mínimo de infraestrutura e apenas sete recebem visitantes. Todas estas atividades demandam recursos financeiros. E a calamitosa falta destes põe em risco a efetividade e integridade destas UCs.

A situação atual geral das UCs no Brasil é bastante preocupante, com fortes ataques aos nossos parques e reservas. Não é exagero dizer que todo o sistema de áreas protegidas já existente no Brasil está sob ameaça. Esforços de décadas podem ser comprometidos e acordos e metas descumpridos. Um exemplo é a Meta 11 de Aichi - cujo tratado o Brasil é signatário- e que prevê que até 2020 devem ser preservados pelo menos 17% dos ecossistemas terrestres e 10% dos marinhos através de sistemas eficazes de áreas protegidas. Embora a cobertura total de áreas protegidas terrestres brasileiras ultrapasse a meta, a cobertura marinha está bem abaixo de 10% de proteção. Porém, o Governo brasileiro tem metas nacionais que são mais ambiciosas que aquelas estabelecidas em Aichi. A resolução CONABIO 6/2013, que dispõe sobre as Metas Nacionais de Biodiversidade para 2020, estabelece valores mínimos de 30% para a Amazônia e de 17% para os demais biomas terrestres. Assim, quando considerada a representatividade dentro de cada bioma, todos menos a Amazônia estão aquém da proteção pretendida. Com cerca de 7,5% de proteção - mas cerca de só 1% de proteção integral- a Caatinga está bem, mas bem longe da meta de 17%.

Há diferentes maneiras de se acabar com uma área protegida. Há abordagens explícitas e rápidas como as Medidas Provisórias recentemente tentadas pelo nosso Poder Executivo. Há também as falhas grotescas de comando e controle por parte dos órgãos ambientais, como acontece no Maranhão. Ou transformá-las em moeda de troca por licenças de usinas, como aconteceu em Rondônia. Mas há ainda uma forma mais sutil, lenta e que frequentemente passa despercebida do grande público: Matá-las aos pouquinhos, de inanição, estrangulando seus recursos, e deixando-as sem gestores, e mais frágeis e vulneráveis à caridade de quem as detesta. Será este o destino das UCs federais da Caatinga?

P.S. Há algumas semanas o ICMBio, em parceria com o IPÊ, disponibilizou uma nova base de dados sobre as UCs brasileiras. Essa iniciativa de transparência e acesso à informação deve ser parabenizada. A maior dificuldade que tivemos em nossa pesquisa foi obter dados sobre o número exato de servidores lotados em cada UC e seus respectivos salários e gratificações. Essas são informações necessárias para o correto cálculo do valor total investido em cada unidade pelo ICMBio. De fato, a publicação de nosso artigo na Biotropica atrasou por vários meses, pois alguns dos revisores científicos apontaram que esta era uma informação crucial para a pesquisa. O processo de busca dessas informações de forma fidedigna foi muito frustrante e após esgotarmos as possibilidades tivemos que usar uma estimativa disponível em uma fonte alternativa. Se tivéssemos tido acesso a esta nova base de dados há pelo menos um ano, certamente nosso artigo teria sido publicado em janeiro de 2017.



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Caatinga

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