Em Pernambuco, aldeia dos pipipãs pode ser diminuída pela metade com o projeto encampado pelo governo Lula
Um forte cheiro de incenso toma conta do ar. À luz de velas, o pajé Expedito Roseno, autoridade religiosa máxima da aldeia indígena, dá início ao ritual. Com voz firme e semblante sério, o homem de pele escura dá início ao toante. A ele, somam-se dezenas de vozes e maracás pulsantes, chacoalhados por mãos femininas e masculinas de todas as idades. A casa do pajé sedia o culto, onde, mesmo sob fraca luz, observa-se no rosto dos participantes expressões de fé e esperança. Velhos, jovens, adolescentes, crianças e até bebês de colo amontoam-se num cômodo pequeno, sentados no chão de terra batida.
Depois de alguns toantes, uma pausa. A jurema, árvore da região do Semi-Árido, entra no ritual sagrado. Em uma jarra de barro, pedaços do tronco são distribuídos em pequenas cuias aos participantes - uma tradição dos índios pipipãs em rituais. Durante a celebração, os índios "recebem" o que chamam de encantados, que seriam espíritos de antepassados.
Rituais religiosos
A festa da jurema acontece conforme as necessidades espirituais dos moradores da aldeia, localizada no município de Floresta PE). Além dela, os pipipãs realizam outros rituais religiosos, como o Toré, que acontece a cada quinze dias, e o Ouricuri, quando passam 10 dias do mês de outubro reunidos na serra Negra, reserva biológica, considerada um lugar sagrado para o povo Pipipã, onde inclusive há um cemitério indígena. Mas essa tradição corre o risco de desaparecer.
Pelo menos do lugar onde hoje é realizada. A aldeia dos pipipãs, de 10 malocas e 2.050 indígenas, poderá ter seu território diminuído pela metade, com a construção do canal do eixo leste da transposição do rio São Francisco. O ponto de partida da gigantesca obra será entre a cidade de Floresta e Petrolândia, depois cruzará as terras indígenas dos
pipipãs e Kambywas e seguirá até os Estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte. "O canal da transposição vai passar em cima de Icó Mandantes, de malocas dos pipipãs e vai atravessar na altura de serra Negra. Uma área enorme dos índios será reduzida. Por isso que o Ibama está de olho na região", diz Alzení Tomáz, do Conselho Pastoral dos
Pescadores (CPP), comentando as recentes investidas do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) na região. "Eles querem que a gente abra mão da serra Negra para a transposição" De acordo com Alzeni, como os canais do projeto atravessam tribos, os povos atingidos ou serão removidos ou terão que abrir mão de parte dos seus territórios. O cacique da aldeia, Valdemir Amaro Lisboa, questiona: Como vamos abrir mão dessa área se as referências do povo Pipipã estão na Serra Negra, seja tanto do ponto de vista histórico, antropológico quanto religioso?". O pajé Expedito Roseno endossa. "A serra Negra não é só nossa, é de todos os irmãos de Pernambuco". Além disso, ele destaca que a área das malocas será `espremida' "Esse é meu receio porque até agora não esclareceram qual será a área de contenção desse canal".
Moeda de troca
No final de 2005, uma equipe do Ministério da Integração Nacional esteve na aldeia para defender o projeto da transposição que, segundo eles, traria a possibilidade de terras irrigadas aos indígenas. Sugeriram a execução de uma série de benfeitorias para a aldeia, como a construção de casas de alvenaria. Na segunda visita, em 2007,
levaram um estudo de impactos etnoecológicos da transposição na região. "Sem conhecimento da área, já diziam que as pessoas precisavam de casa, energia elétrica, um monte de coisas", comenta Valemir. Para ele, independentemente de transposição, é obrigação do governo construir casas nas áreas indígenas. "Se eles estão trazendo, vamos receber, mas isso não quer dizer que estejamos dando apoio à transposição". Uma dificuldade que os pipipãs enfrentam é a lentidão do governo em relação à demarcação das terras. De acordo com os indígenas, o governo estaria tentando fazer uma troca: se aceitassem ceder a área para transposição, teriam as terras demarcadas. "Temos a consciência de que ainda somos vistos pelo o governo como qualquer coisa, ainda acham que estamos na fase de trocar coisas por um espelho; um saquinho de fumo", aponta o cacique dos pipipãs.
Sede de quê?
Se de um lado o governo e defensores do megaprojeto afirmam que a transposição vai matar a sede do povo nordestino, os críticos respondem que apenas 4% das águas serão destinadas à população do Semi-Árido. "O que está por trás da transposição são os grandes empresários, como os que produzem flores e camarão em larga escala. Se o projeto realmente visasse matar a sede da população, não precisaria de uma obra dessa envergadura", analisa Valdemir. Outro mito que os críticos da transposição querem destruir é o de que há um deficit hídrico no Semi-Árido. De acordo com o cacique da aldeia, se o problema do Nordeste fosse água, teria como resolver a questão, armazenando a água das chuvas. "Aqui, por exemplo, temos água para o consumo humano, não animal. Quando chega a época das chuvas, a água vai embora, porque não tem onde armazenar. Então, o problema não é falta de chuva; falta de água. Não, o Nordeste tem problema de água, mas sim de políticas públicas". De acordo com Alzeni Tomaz, o canal leste é um exemplo de desperdício e mau gerenciamento de água, "falta controle da água para irrigação". Decepcionado com as promessas não cumpridas de demarcação de terras indígenas, Valdemir também critica as declarações que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez em novembro de 2006: de que as comunidades tradicionais seriam "penduricalhos". O cacique rebate: "Isso foi extremamente desagradável, começamos a usar outro discurso desde então, de que esse é o governo do companheiro de George Bush, Delfim Netto; Inocêncio de Oliveira, e não mais nosso companheiro".
PIB:Nordeste
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