Destino preservado

Cadernos de Cidadania Sesc, n. 3, p. 26-30 - 27/09/2010
Destino preservado

texto: Juliana Borges
fotos: André Spínola e Castro

Todos os meses de novembro, por volta do dia 20 - data de comemoração da consciência negra - a comunidade de Mandira, um pequeno vilarejo caiçara do município de Cananeia, no litoral Sul de São Paulo, realiza a Festa da Ostra. Durante quatro dias, cerca de duas mil pessoas - entre moradores de povoados vizinhos e turistas de todo o Estado - visitam esse pequeno povoado de 25 famílias para ouvir música típica, dançar e comer diferentes pratos preparadas com o molusco - cuja extração é a principal atividade econômica da região. No resto do ano, a comunidade recebe, em média, 100 visitantes por mês, principalmente estudantes, pesquisadores e universitários.
A comunidade é formada por uma igrejinha, uma construção simples de alvenaria em que funciona o centro comunitário e uma oficina de costura, canoas de pescador e algumas casas de madeira ou concreto espalhadas pela estrada de terra que corta a mata -nada muito diferente de outas tantas comunidades caiçaras do litoral de São Paulo e Paraná. O vilarejo não é exatamente o estereótipo de destino turístico - não há uma linda praia, um rio exuberante ou uma boa infraestrutura ao visitante. O grande atrativo do povoado não são as suas belezas naturais, mas justamente a história e o modo de Todos os meses de novembro, por volta do dia 20 - data de comemoração da consciência negra - a comunidade de Mandira, um pequeno vilarejo caiçara do município de Cananeia, no litoral Sul de São Paulo, realiza a Festa da Ostra. Durante quatro dias, cerca de duas mil pessoas - entre moradores de povoados vizinhos e turistas vida tradicional dos seus moradores.
Mandira é um típico exemplo como o turismo de base comunitária pode ajudar a complementar a renda de uma comunidade tradicional sem descaracterizar seus hábitos e costumes.
Nessa modalidade de turismo, os próprio moradores de um lugar, a partir da gestão coletiva, da transparência no uso e destinação dos recursos e na qual a principal atração turística é o modo de vida da população local. "A comunidade é proprietária dos empreendimentos turísticos e há preocupação em minimizar o impacto ambiental e fortalecer ações de conservação da natureza", diz Cecilia Zanotti, fundadora da organização social Projeto Bagagem, que trabalha para desenvolver essa atividade em diferentes localidades do Brasil. "É a única forma de turismo possível em uma área de preservação permanente."
Os programas que são feitos em Mandira são os mais simples possíveis: conhecer o cultivo da ostra - hoje a principal atividade econômica da região - acompanhar ao processo de fabricação de farinha de mandioca, visitar as ruínas do antigo moinho dos tempos coloniais, almoçar na sede da associação de moradores ou participar de uma roda de conversa sobre a história da comunidade. "Somos caiçaras, mas de origem quilombola." explica Nei Mandira, que coordena um programa de turismo comunitário na comunidade que já teve apoio da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo. "É um povoado com uma história muito rica, que fornece um vasto material para o desenvolvimento de atividades pedagógicas e culturais", afirma André Stern, da Araribá Turismo, agência com sede em São Paulo que organiza viagens de estudo do meio para escolas. Há dois anos, a empresa organiza viagens com grupos escolares para Mandira.
O vilarejo nasceu em 1868, quando o patriarca da família, Francisco Mandira, filho bastardo de um senhor de engenho de nome Antônio Florêncio de Andrade com uma escrava chamada Tereza, herdou as terras do sítio, com cerca de 1 200 alqueires. Francisco casou-se, teve filhos e netos, que acabaram povoando o vilarejo. Hoje, sete gerações depois, os Mandira já são mais de 300, sendo que muitos deles migraram para outros povoados e cidades do país.
Para que o turismo comunitário funcione em uma comunidade tradicional, além de uma liderança comunitária forte, é necessário que ela seja uma atividade econômica complementar, e não a principal fonte de renda das pessoas. "É uma atividade que sempre vai ser sazonal e, por isso, não oferece perspectiva de renda durante o ano todo", afirma o professor Antonio Carlos Diegues, pesquisador sênior do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras (Nupaub), da Universidade de São Paulo.

Em Mandira, essa atividade está dando certo porque boa parte da população tem outra forma de sustento.
Hoje, cerca de 30 famílias desse e de outros povoados vivem da exploração da ostra. Durante várias gerações, ganhar a vida pegando ostras no mangue era um ocupação considerada pouco nobre pelos moradores do Mandira.
A pesca, a roça, a extração de cacheta (um tipo de madeira usada para fazer instrumentos musicais), produção da farinha o comércio ou qualquer outra atividade econômica era considerada mais digna do que afundar os pés e os braços no mangue para extrair o molusco e vendê-lo a um preço módico para atravessadores.
"Era algo que ninguém queria fazer", diz Francisco Mandira, conhecido como Chico, o líder comunitário local.
A situação começou a mudar em 1993, quando um projeto do Nupaub coordenado por Diegues escolheu o vilarejo como piloto para um projeto de criação comunitária de ostra em cativeiro. "Mandira tinha dois fatores essenciais para o sucesso do programa: liderança comunitária e algumas famílias que já extraíam ostra", diz Diegues. Nesse ano, algumas famílias testaram uma técnica que retirava as "sementes" das ostras do mangue e as transportava para tanques de arame que ficavam submersos numa área próxima da comunidade.
O processo, além de evitar a degradação ambiental, faz com que o molusco tenha um ciclo de engorda de apenas quatro meses - menos de metade do tempo que uma ostra geralmente leva para crescer em condições normais. A técnica agradou os moradores da região e os incentivou a se mobilizarem para criar uma associação de moradores e uma cooperativa, batizada de Cooperostra.
Criada a cooperativa, o próximo passo foi a compra de um barco a motor para transportar a ostra de Mandira para Cananeia - o que leva cerca de uma hora de viagem - onde a mercadoria pode ser comprada. Esse foi um momento crucial para o sucesso da empreitada, já que o barco próprio elimina a necessidade de ter um atravessador para distribuir o produto. Com o tempo, a atividade foi atraindo a atenção de outros moradores e a cooperativa foi crescendo.
Hoje, a Cooperostra tem 30 cooperados - 80% de Mandira e o restante de outros povoados - que, quando dedicam-se apenas a essa atividade. Hoje, a Cooperostra abastece restaurantes e hotéis do litoral de São Paulo, lojas da Rede Pão de Açúcar e a churrascaria Rubayat. "Nossa ostra tem origem de procedência e passa por um processo de depuração, diz Mário Batista Pontes, presidente da Cooperostra.
Até 2002, a atividade ainda não era legalizada. Explica-se: Desde 1969, toda a área do entorno de Mandira pertencia ao Parque Estadual de Jacupiranga. De acordo com a legislação ambiental do País, nenhuma área de proteção integral, como um parque nacional ou estadual, pode ser habitada ou sofrer qualquer tipo de interferência humana.
No entanto, assim como acontece na maioria das unidades de conservação brasileiras, essa determinação nunca foi cumprida na prática. Os moradores, que sempre viveram da terra, continuaram onde estavam, só que, em nome da preservação ambiental, passaram a ter uma série de restrições aos moradores: é proibido pescar grandes quantidades de peixe ou camarão, fazer qualquer tipo de roça ou caçar. Para quem vive numa comunidade pequena, sem comércio, com apenas uma escolinha de ensino básico e distante da cidade, essas atividades eram praticamente as únicas possíveis para garantir a subsistência.
Nessa época, muita gente resolveu sair da terra dos seus antepassados e resolveu ir tentar a vida na cidade.
Mesmo com os impedimentos legais, a atividade de criação de ostra prosperou e começou a chamar a atenção do poder público e de entidades ligadas ao meio ambiente como uma alternativa de proteção do meio ambiente com a participação da comunidade local.
Foi somente em 2002, depois de muita batalha da associação dos moradores de Mandira, o povoado conseguiu ver realizada uma antiga reivindicação: a região do entorno de Mandira foi transformada em reserva extrativista. Nesse tipo de unidade de preservação, não apenas é permitido que as populações tradicionais permaneçam em suas terras quanto a exploração econômica de forma sustentável é incentivada como uma forma de preserva o meio ambiente. "A lógica é que a natureza em pé tem mais valor que derrubada. Se uma comunidade pode depender da natureza sem devastá-la, ela vai protegê-la", diz Diegues. Agora, a comunidade de Mandira está encampando uma nova batalha: querem ser oficialmente reconhecidos pelo Incra como quilombolas para poderem receber de volta a terra que pertenceu ao patriarca da família e que, hoje, está nas mãos de terceiros. "Tudo que conseguimos até hoje foi graças à mobilização da comunidade. Dessa vez não será diferente", diz Chico Mandira.


Líder comunitário teve o seu trabalho premiado pela ONU

O principal líder comunitário do povoado tem o mesmo nome do patriarca da família: Francisco Mandira.
O primeiro Mandira, filho bastardo de um senhor de engenho de nome Antônio Florêncio Andrade com uma escrava, herdou parte das terras de seu pai em 1868, fundando uma comunidade quilombola. Sete gerações depois, Francisco - ou Chico Mandira, como é conhecido - foi o principal articulador de todas as conquistas do povoado. Ele tem 11 irmãos, sete filhos e seis netos. Ao contrário de muitos dos seus primos, que abandonaram Mandira nas décadas de 70 e 80, ele sempre acreditou que ficar na terra dos seus antepassados seria a melhor alternativa e decidiu lutar para conquistar seus direitos e melhorar a qualidade de vida dos seus.
Ele foi o primeiro presidente da Associação de Moradores do Mandira, criada em 1993. Teve papel essencial na valorização da atividade de coleta de ostra e na criação da Cooperostra.
Encabeçou o processo de reconhecimento de Mandira como quilombola no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).
Em 2002, como reconhecimento do seu trabalho, Chico recebeu um prêmio no fórum Rio+10, organizado pela ONU em Johannesburgo, na África do Sul. A história de Mandira foi considerada uma das melhores iniciativas de desenvolvimento sustentável do mundo. Em 2009, o líder também esteve no maior evento ligado ao meio ambiente do mundo: a Cop16.


Reserva da prainha do canto verde, no ceará, faz um ano

A areia clara da Prainha do Canto Verde, em Beberibe, no Ceará, a 120 km de Fortaleza, abriga uma bem sucedida experiência de turismo de base comunitária no Brasil. A reserva extrativista (resex) completou um ano em junho passado e hoje abriga 246 famílias que vivem basicamente da pesca e do artesanato conciliados à recepção organizada dos mais de 1.200 turistas que anualmente vão conhecer a região.
"São pessoas que vêm para conhecer nossa cultura, fazer pesquisas, e, claro, descansar", conta o coordenador da resex, Lindomar Fernandes.
Para Fernandes, a resex é uma conquista histórica da comunidade pesqueira, que, desde a década de 70, luta contra a especulação imobiliária e pelo direito à terra. "Nosso objetivo sempre foi preservar o espaço para as futuras gerações, e hoje a população está mais forte e segura", comemora.
O encontro cultural entre turistas e comunidade é promovido a todo intante na prainha. Em geral, os visitantes passam três noites no local, ficam hospedados nas próprias casas dos pescadores e trocam experiências.
A cooperativa de turismo comunitário fomentada pela população local leva os visitantes a acessar os atrativos naturais de modo sustentável.
Enquanto os homens pescam e garantem a principal atividade financeira da região, as mulheres e jovens atuam com turismo e artesanato. Entre tantos passeios naturais possíveis na exuberante reserva, é possível navegar num catamarã à vela ou em jangadas de pescadores. "A partir de agora, ninguém mais vai poder se apossar destas terras.
É uma conquista muito importante pela qual tivemos que lutar durante muitos anos, mas o resultado chegou e agora é seguir em frente tentando consolidar as estratégias de sustentabilidade comunitária", conta Fernandes.
Reservas
As resexs, regulamentadas por lei, são habitadas por populações tradicionais cuja subsistência é amparada no extrativismo, na agricultura familiar e na criação de pequenos animais. O objetivo das reservas é proteger os meios de vida e a cultura dos moradores locais, assegurando o uso sustentável de recursos naturais. Sendo de domínio público, mas com uso concedido às populações extrativistas tradicionais, as reservas não permitem áreas particulares em seus limites.
As unidades de conservação são fiscalizadas pelo órgão federal responsável e a visitação pública só pode ocorrer dentro dos interesses da comunidade e em conformidade com um plano de manejo que regule o uso e a exploração da reserva.

Mais informações:
www.prainhadocantoverde.org.br

Cadernos de Cidadania Sesc, n. 3, 27/09/2010, p. 26-30
UC:Reserva Extrativista

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