Jaú: Um rio de histórias, gente e biodiversidade

Amazônia Real - www.amazoniareal.com.br - 12/11/2014
A série de artigos produzida pela jornalista Elaíze Farias sobre a Comunidade Quilombola do Tambor, em Novo Airão (AM), publicada aqui no site Amazônia Real, traz à tona os conflitos que ainda persistem em torno da criação e implementação do Parque Nacional do Jaú, cujo pano de fundo é um extenso e complexo debate sobre a questão da presença humana em unidades de conservação e/ou da criação de áreas protegidas de proteção integral em locais de vida de populações humanas tradicionais.

Obviamente este tema é amplo e de extrema complexidade, alvo de inúmeros debates, artigos, livros, teses e dissertações e tem norteado inúmeras ações. Achei então que deveria me juntar a este novo velho debate e trazer alguns elementos que julgo relevantes e que tem relação com o histórico do Jaú.

Comecei a conhecer o rio Jaú há quase 20 anos, ainda estudante de mestrado. Foi minha primeira grande aventura amazônica. Um desafio de desenvolver um trabalho científico voltado a gerar conhecimento sobre a biologia e o extrativismo de um cipó de valor comercial, o Cipó-titica, muito utilizado pelos moradores deste famoso e emblemático rio.

O ano era 1995 e meu objeto de estudo se enquadrava a um processo intenso de geração de conhecimento técnico-científico, liderado pela Fundação Vitória Amazônica em parceria com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), envolvendo dezenas de pesquisadores e técnicos das mais diversas áreas do conhecimento na construção do Plano de Manejo do então maior Parque Nacional do Brasil.

O desafio do plano era proporcional à grandeza do Parque Nacional do Jaú, uma área geográfica maior que a Bélgica, que desde a sua criação em 1980 já se evidenciavam as marcas dos conflitos advindos de sua própria existência, contraposta ao complexo histórico humano regional.

- Declínio do Extrativismo e Surgimento das Áreas Protegidas no Rio Negro

A criação do Parque Nacional do Jaú tem sua origem num processo de estabelecimento de áreas protegidas na região iniciado nos anos 70. À época, o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) iniciava uma agenda para avaliar potencialidades na Bacia do Rio Negro. Teve como base estudos que indicavam a região do Rio Jaú como representativa de uma região de extrema importância do ponto de vista da conservação e seu potencial para constituir uma área protegida incorporando integralmente uma bacia de águas pretas e seus ecossistemas associados.

Estes foram anos difíceis, em plena ditadura militar, o Brasil ainda engatinhando na agenda conservacionista e ainda carente em referências sólidas para embasar processos como este. Criar uma Unidade de Conservação era basicamente definir um polígono sobre uma área de interesse e decretá-lo como área especialmente protegida. E em se havendo moradores dentro dos limites de uma Unidade de Conservação, estes deveriam ser indenizados e assim deixar a área.

Desta forma, este processo inicial não buscou consolidar um conhecimento mais profundo da área a ser transformada em um Parque Nacional, não considerou nenhuma possibilidade de incluir seus moradores neste processo, assim como desconsiderou a alta complexidade das relações existentes entre os grupos sociais e de sua história.

No mesmo período, as famílias que viviam ao longo do Rio Negro e seus afluentes experimentavam uma profunda crise, resultante das oscilações de mercado para os produtos extrativistas que abasteciam a cadeia comercial estabelecida desde o século 19. O historiador Victor Leonardi em seu livro "Os Historiadores e os rios: Natureza e Ruína na Amazônia Brasileira", faz uma análise cronológica deste período e nos dá bons elementos para entendermos a base dos conflitos históricos na região.

Leonardi apresenta dados coletados a partir de uma extensa pesquisa a documentos históricos, assim como entrevistas com antigos moradores do rio Jaú, trabalho que se integrou ao desafio inicial de se buscar construir as bases de conhecimento para a implementação do Parque Nacional do Jaú. Trouxe à luz um processo complexo de ocupação da região e que foi o mote de inúmeros conflitos socioculturais registrados na região.

Estes conflitos, inicialmente observados pela violenta dominação das culturas indígenas que ali viviam e o estabelecimento das primeiras vilas ao longo do rio Negro, como entrepostos comerciais de produtos da floresta, apresentam diversos matises que, de certa forma, ajudaram a consolidar o perfil sociocultural regional, ganhando novos contornos de meados do século 19 e início do 20. Neste período, esta região começou a receber levas de imigrantes arregimentados para a exploração da seringa e assentados estrategicamente ao longo dos rios em áreas anteriormente ocupadas por comunidades indígenas. Leonardi conta detalhes sobre os séculos de ocupação colonial da região, iniciado com a fundação da Vila de Santo Elias do Jaú, que viria a se tornar Airão, localizada próximo à confluência do rio Jaú com o Rio Negro, hoje em ruínas.

Esta análise histórica é base essencial para hoje podermos entender melhor o cenário existente no baixo rio Negro, quando a agenda conservacionista chega à região e se inicia o processo de conformação de uma nova realidade, que também gerou seus conflitos, mas também tem gerado oportunidades interessantes para se reconstruir as bases de sustentação para a vida da sociedade que aí vive.

Durante as décadas de 80 e 90, as ações para implementação do Parque Nacional do Jaú foram iniciadas. No cenário regional, as cadeias comerciais dos produtos extrativistas já mostravam grande declínio, mas ainda buscavam produtos como as fibras vegetais, o óleo de copaíba, o breu, a sorva e a própria seringa, além de produtos agrícolas como a farinha-de-mandioca e frutas. Caça e pesca de subsistência e comercial também foram itens importantes na economia local. As famílias que viviam dentro dos limites do Parque já enfrentavam problemas de ordem social e econômica, mas ainda viviam dos resquícios das cadeias comerciais já em pleno declínio. Com as demandas por produtos florestais diminuindo a cada dia, essas famílias, que jamais haviam sido atendidas pelo poder público em suas necessidades básicas ligadas à infraestrutura e serviços de educação e saúde, viram-se cada vez mais pressionadas a deixarem seus locais de moradia em busca de melhores condições de vida na cidade.

Por um lado, a crise nas cadeias comerciais produtivas da região e a falta de políticas públicas para apoiar a vida das comunidades ao longo dos rios. Por outro, a constituição de extensas áreas em Unidades de Conservação de proteção integral, como o Parque Nacional do Jaú e a então Estação Ecológica de Anavilhanas (atual Parque Nacional). Estes processos associados foram grandes responsáveis pelo deslocamento de centenas de famílias em direção às sedes municipais ao longo de toda a calha do Rio Negro.

- Gente e Conservação da Natureza, uma integração possível

Ocorre que no Parque Nacional do Jaú, os trabalhos desenvolvidos à elaboração de seu Plano de Manejo - concluído em 1998, tornavam fundamental a participação dos moradores. Esta forma de construção participativa deste instrumento de gestão de Unidades de Conservação foi pioneira e, ao meu ver, mudou o histórico negativo que pairava em torno das áreas protegidas. Logo depois, o estabelecimento do SNUC - Sistema Nacional de Unidades de Conservação em 2000, enfim conseguiu trazer bases mais positivas no tratamento das questões que envolvem conflitos gerados pela criação de Unidades de Conservação no Brasil e desde então diálogos mais positivos se abriram na busca de soluções para impasses gerados.

Um cenário até então negativo, começou a servir de base para a construção de iniciativas exitosas de busca de conciliação entre a necessidade de se fortalecer uma agenda voltada à conservação da biodiversidade e a busca de formas de se construir modelos que pudessem embasar uma nova forma de desenvolvimento socioeconômico regional.

Os mecanismos de gestão também possibilitaram uma revolução na forma de fazer gestão territorial, onde os Conselhos gestores das Unidades de Conservação têm um papel importante junto aos órgãos gestores. Unidades de Conservação de Uso Sustentável foram criadas na região a partir de demandas locais e têm gerado boas perspectivas para o desenvolvimento local e fortalecimento das comunidades através de projetos inclusivos e duradouros voltados à consolidação de melhorias da qualidade de vida.

Muito tem sido feito para transformar a dura realidade vivida pelas populações do baixo rio Negro, buscando conciliação entre os atores que vivem e atuam na região e construindo novos paradigmas para basear uma nova forma de desenvolvimento socioambiental inclusivo e participativo, onde as áreas protegidas têm um papel fundamental. Resultados já são visíveis e palpáveis, mas ainda há muito o que ser feito.

O atual processo que envolve a discussão em torno da consolidação da Comunidade do Tambor ainda carece de mecanismos que integre esta agenda aos processos de consolidação territorial e desenvolvimento de mecanismos que garantam a sua inclusão no extenso Mosaico de Áreas Protegidas do Baixo Rio Negro e o seu coletivo de atores que estão envolvidos localmente na busca de melhorias, tanto para as famílias que ali vivem quanto na agenda conservacionista que se mostra cada dia mais necessária, frente aos avanços da degradação socioambiental na região.

O reconhecimento do território quilombola não o excluí do universo em que está inserido e onde a agenda da conservação e do desenvolvimento sustentável deve ser fortalecida para que sirva à sociedade regional e que deve também trazer benefícios à todas as comunidades, não só aquelas que vivem no rio Jaú, mas à todas que hoje participam ativamente da construção de uma nova realidade para as famílasi que vivem no Rio Negro.

Muito ainda há que se construir para que problemas históricos sejam resolvidos. É imprescindível que os processos que norteiem as decisões sejam inclusivos, trazendo para o topo das decisões os grupos sociais e instituições que são atores reais de mudanças em curso na região e que pouco espaço têm tido nas discussões e nos centros tomadores de decisão.



Carlos Durigan é geógrafo, mestre em Ecologia, vive e atua na Amazônia há 20 anos. Participa de pesquisas multidisciplinares envolvendo estudos e trabalhos de campo em biodiversidade e sociodiversidade para subsidiar ações em Unidades de Conservação e Terras Indígenas. Atualmente é Diretor do Programa Amazônia da WCS-Brasil (Associação Conservação da Vida Silvestre).


íntegra da notícia: http://amazoniareal.com.br/jau-um-rio-de-historias-gente-e-biodiversidade/
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